terça-feira, 29 de setembro de 2009

O homem no espelho

Eu sei, é o que todos dizem: histórias de pessoas e espelhos já foram contadas antes, anos e anos antes de mim. Mas esse maldito espelho de última categoria que tenho no meu quarto não conversa comigo, não me leva a outras dimensões e tampouco afirma o óbvio: que existe alguém mais belo que eu. Ele só me mostra diariamente minha degradação física e meus colapsos mentais.
Eu tinha uma esposa. Quer dizer, ela não era bem minha esposa, nunca fomos formalmente casados. Mas eu a conheci aos dezenove, montamos um apartamento aos meus 21 e vivemos juntos por 13 anos, quando eu tive meu primeiro colapso mental e a deixei. Aproximadamente dois anos depois ela morreu, suicídio, a covardia mais corajosa que já vi alguém cometer. Eu já estava doente antes disso e continuo doente agora, agora que se passaram cinco anos da morte dela, e muito embora eu tenha piorado consideravelmente desde que ela se foi, meu corpo sempre se esquece de morrer. Coisa muito agradável de se fazer, por sinal. Desde que ela morreu eu me abracei à minha mortalha e tenho esperado pela Indesejada, que anda me ignorando solenemente.
Nina nasceu pra mim numa noite subterrânea na faculdade. À época eu já parecia doente, tinha um quê de sorumbático que irritava muita gente. Sempre fui uma pessoa grave e silenciosa, tão tímido quanto um ser humano podia ser, e isso parecia meio arrogante às pessoas. Ou seja, eu praticamente não tinha amigos. Cursava Filosofia, era chato e carregava comigo a maior solidão do mundo. Andava pra cima e pra baixo com meu maço de cigarros completamente amassado, um livro velho que de tão lido e relido eu já tinha decorado e o porta-uísque sempre abastecido, que passou do meu avô imediatamente pra mim por ser meu pai um abstêmio convicto e feroz. O livro era Cem Anos de Solidão, em espanhol, uma raridade que encontrei a um preço irrisório num sebo vizinho à minha casa, abandonado como eu. Não tinha lá muito respeito por ele, fazia todo tipo de anotação nas suas páginas e, por nunca deixá-lo na estante, estava todo deteriorado. Mas eu tinha um apego sobre-humano àquele exemplar, como se eu não pudesse andar sem ele. Falava pouco às aulas e, às vezes, sequer atentava para a explicação do professor, absorvido na produção do meu romance, a minha grande obra que nunca consegui concluir na vida, uma das muitas coisas às quais me dediquei e falhei miseravalmente. Ora, nem morrer eu consigo.


Nina, era de Nina que eu falava. Era uma aula de Ética III, uma das matérias mais insuportavelmente enfadonhas de todos os tempos. Metade da sala dormia e a outra metade se concentrava em qualquer coisa que não fosse aquele senhor já idoso lendo o seu plano de aula. Saí da sala sem ser notado – não que fosse uma tarefa assim difícil – e acendi um cigarro no corredor. Sorvi a fumaça como se finalmente voltasse a respirar, tomei um gole do uísque e me sentei no chão pra reler meus apontamentos. Já disse que era uma noite subterrânea, não disse? Sim, a sala era no subsolo da faculdade, e aqueles corredores silenciosos e sombrios estavam sempre à espera de uma anunciação. E ela veio.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”


Bernardo Soares. Meu coração parou, assim, mas sem pensar. Alguém ali ou além recitava Bernardo Soares. Me ergui num salto mais ágil do que me sabia capaz e quase caí, olhando ao redor e procurando a voz, ou melhor, a dona dela.
__ Gosta de Pessoa?
Ela estava à minha frente, e parecia que sempre estivera ali, eu é que nunca havia enxergado.
__ Gosto muito de Pessoa. Mas o Bernardo é meu favorito.
__ É, eu reparei – resmunguei sem inteligência.
Era branca de uma brancura absurda, palpável, quase líquida. Meu instinto foi tocá-la, mas não pude, eu já não fazia mais sentido. Mal sabia se ela existia. Contrastando com sua brancura líquida, cabelos lisos de um negrume só, uma escuridão impenetrável.
__ Como é seu nome?
__ Breno.
__ Oi, eu sou a Nina.
Ela sorriu, e eu sorri de volta só porque o sorriso dela me encheu de uma felicidade imbecil. Ela usava um vestido de um amarelo berrante que ofuscava, e quando se aproximou pra me dar um abraço – que só recebi, sem retribuir – causou um choque visual ao se encontrar com a minha blusa preta.
__ Desculpa, mas de onde você saiu?
__ Festinha nas Cênicas. Fui ao banheiro e na volta te vi fumando. Então vim pedir um cigarro.
__ Você faz Cênicas?
__ Não, Desenho Industrial. Você pode me dar um cigarro? O que você estuda?
__ Filosofia.
__ Interessante. Por que não está na festa?
__ Não sou de festas.
Ela esquadrinhou o chão à procura do isqueiro e encontrou meu livro.
__ Um intelectual, é? Sabe, eles também frequentavam festas. Os intelectuais. Bebiam absinto e usavam drogas, essas coisas.
Dei de ombros. Ela riu, superior. Sacudiu o livro com pouquíssimo zelo, quis matá-la. Mas não pude.
__ Gosta de García Márquez, pelo visto.
__ É meu preferido. Esse é o livro da minha vida.
__ Sei. Você carrega consigo a maior solidão do mundo. Eu até gosto dele, sabe? Mas prefiro poesia.
__ Você é passional.
Sorriu novamente, com gosto.
__ É? E de onde você tirou isso?
__ De lugar nenhum. É só uma teoria.
Estava nervoso, incomodado, intimidado e crescentemente envergonhado. Ela tinha um ar insolente que me desnorteava, eu não sabia o que fazer das minhas mãos. Por fim tomei o livro e o isqueiro dela e dei as costas.
__ Onde você vai, Bruno?
__ É Breno. Meu nome é Breno. Vou voltar pra aula.
Ela me puxou pelo braço, sempre sorrindo.
__ Esquece a aula. Vem, vamos nos espalhar por aí.


Passei três dias seguidos na casa dela, vivendo de sexo e brisa, ou seja, um amor desesperado e latente. Eu me apaixonei pela sua loucura. A casa era o exemplo da desordem, o som era alto dia e noite, pessoas iam e vinham a qualquer hora e ela se alimentava de maconha. E mesmo bebendo feito uma lontra selvagem e fumando maconha como quem respira ela quase nunca dormia. Tinha o maior número de amigos que pude imaginar e pintava o tempo todo, andando pela casa em trajes sumários como se estivesse sozinha. Por vezes ela me deixava à deriva e se perdia nas coisas dela que eram só dela e continuariam sendo pelos próximos quinze anos.
Dentro do que conseguimos aceitar como sensato construímos nossa vidinha. Ou melhor, ela construiu sua vida com o resto do mundo, eu construí um castelo inacessível e nos tranquei na torre mais alta. Minha vida era ela. Meu sangue era o dela, meu respirar era o dela. Trabalhava por trabalhar, estudava por estudar, eu vivi Nina em desespero.


Dois anos depois de sua morte eu tive meu segundo colapso mental e larguei o emprego, prestes a me aposentar integralmente por invalidez. Meu pai ficou felicíssimo, claro. Pediu minha interdição e me trancou num hospital em São Paulo para tratamento. Terapia, quimioterapia, eu só queria morrer, mas não podia. Nina morta em mim doía, toda a dor do mundo, toda a solidão do mundo. Após um ano tive o terceiro colapso, me dei alta daquele hospital infernal e me mudei para o Rio de Janeiro. Fumava dois maços de cigarro por dia pra ver se apressava a hora de ir embora e bebia ininterruptamente. Escrevia, virei escritor, fui publicado e lido aqui e ali, foi no terceiro mês de Rio que o espelho apareceu. Só comprei pra me livrar do vendedor, larguei aquela monstruosidade barroca no meu quarto e não lhe dei atenção por uns quatro dias, até me ver refletido nele.
Tive o quarto colapso mental, então. Parei de fumar, reduzi drasticamente a bebida àquele cálice de vinho famigerado dos cardiologistas e tentei fazer uns amigos. Cheguei a viver um pseudo-amor com uma moça branca e bela que hoje me odeia violentamente. Adiei a morte enquanto me foi possível, mas por um motivo qualquer que ainda agora ignoro completamente, pois não havia vontade, não havia apego nenhum à vida. Continuei a amar Nina de um jeito tão doentio e agalopado que me parecia errado não estar com ela.


Hoje, hoje tive meu quinto e último colapso mental, eu acho. Cheguei em casa mais embriagado que uma marmota mutante e vi Nina branca, incrivelmente branca, no espelho. Sem pensar uma vez sequer eu o destruí, juntando seus destroços sobre a cama, e me deitei ao seu lado, todas as pílulas nas mãos ensanguentadas.


“O coração, se pudesse pensar, pararia”. Acho que pára dessa vez.

Daniela Andrade Rodrigues

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Breno é meu personagem mais longevo. Sua história está contada em textos fragmentados no blog Cognome - Verdade.

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